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    A Estrangeira

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    • Carrossel | V Acto – Aceitação

      Janeiro 27th, 2023

      O homem está sentado no banco. A mulher entra em cena e senta-se ao lado dele.

      Mulher – O que fazes aqui tão cedo? Ainda não chegou a tua hora.

      Homem – Estava a dizer à Mila que devias estar a vir.

      Mulher – Ainda falas com ela?

      Homem – Todos os dias, o tempo todo. Como estás?

      Mulher – A tentar manter o meu trabalho, distrair-me a aborrecer as pessoas e a não me matar. E tu?

      Homem – Contente por te ouvir a falar assim.

      Mulher – É. Estou melhor, já não tenho vontade de enfiar a cabeça no forno.

      Homem – Bem me parecia que não eras tão talentosa como a Sylvia Plath.

      Mulher – Estou a tentar perceber se ainda consigo chatear-te depois de morrer, mas como ainda não cheguei lá, vou continuar a fazer isso em vida. 

      Homem – Todos temos de ter um hobby com que se distrair.

      Mulher – Quando me senti como se o chão me tivesse faltado e vim neste lugar de perdas, sem saber estava à procura de alguém que me compreendesse. E tu apareceste.

      Homem – Fazes-me sentir uma alma penada…se bem que é um banco de cemitério. Era expectável.

      Mulher – Ainda penso no Leo todos os dias. Como se houvesse um lado meu que tivesse aceitado o facto de já não estarmos juntos. Mas ainda há um outro, forte o suficiente para fechar os olhos e conseguir desenhar e sentir o rosto dele com a ponta dos meus dedos.

      Homem – Isto é bonito. Significa que és humana. E não um vírus irritante a espalhar lamúrias por aí.
      Gostava que encontrasses algo que te motivasse a levantar da cama de manhã.

      Mulher – Decidi que a minha forma de sobreviver a isto tudo será ser a melhor pessoa que eu puder da forma como já sou. 

      Homem – Gosto de te ouvir a falar assim. Lembra-te que todos já passamos por pequenos lutos. Desde sair do colo da mãe a deixar a casa dos pais. Só com a consciência da evolução que isto nos trás é que continuamos a viver.

      É importante fechar um ciclo para se abrir outro. Encarar com sensibilidade e humanidade as dores desta perda e saber que nem tudo depende apenas da tua decisão e especialmente no que toca a relações, reconhecer e partilhar as responsabilidades pelo seu término.

      Mulher – Tudo ficaria mais leve se ele também reconhecesse que falhou.

      Homem – Tens estado com outras pessoas? Talvez combinar com alguém para tomar um café.

      Mulher – Tomar café? Isto é um convite impróprio. Não há bicos sem bicas e eu não estou pronta para me envolver com outra pessoa.

      Riem-se juntos.

      Homem – Não sabes o que te aguarda no futuro. Podes te sentir triste e chorar às vezes. Mas não podes deixar de ter esperança de que vais ficar bem.

      Mulher – Eu tenho esperança. Ninguém vai substituir o Leo e o que fomos. Em cada célula minha há um pouco dele e isso nada nem ninguém me tira. Nem o tempo.

      Ele costumava dizer que não importa o que acontecesse eu deveria manter a minha essência. Vou me voltar para isto, revirar o meu baú interior e tentar buscar algo digno de quem tanto amor deu e recebeu. Quem sabe assim eu reencontre a tal da felicidade.

      Homem – A felicidade é algo tão bom que não importa de onde ela vem. De braços que te envolvem, de quatro patas que te pedem para passear ou de duas pessoas que se tornam amigas por partilhar as suas dores. Tudo pode ser um ponto de partida para o teu recomeço.

      FIM.

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    • Carrossel | IV Acto – Depressão

      Janeiro 26th, 2023

      O homem está sentado no banco quando a mulher chega e senta-se ao lado dele.

      Homem – Como estás?

      Mulher abana a cabeça em negação.

      Mulher – Tive um dia mal.

      Detesto o que faço. Todos os dias o mesmo trabalho de Sísifo.

      O Leo sabia como era. Chegamos a trabalhar juntos e ríamos e reclamávamos no ombro um do outro. Ele tinha um humor refinado, era sarcástico e cómico. Inteligente. E nós no meio daquela gente medíocre.

      Homem – Isso faz de ti alguém igualmente medíocre?

      Mulher – Agora que dizes…se calhar até sou. O que faz de alguém um medíocre?

      Homem – Alguém que não acrescenta valor a nada.

      Mulher – Então, sim. Neste momento é o que sou. Uma pessoa medíocre e que faz más escolhas. Alguém que se está a lixar para os outros e para o mundo. Se deixamos de ter trabalho amanhã, o que importa? Vamos todos acabar por fazer companhia à Mila.

      Homem – És assim tão má pessoa?

      Mulher – Devo ser.

      Homem – Se és assim tá má, como conquistaste o Leo?

      Mulher – Compreendi-o. Quando toda a gente o ostracizava, quis conhecê-lo por quem ele se mostrou para mim. E me apaixonei.

      Sinto-me triste o tempo todo. Sinto que com a partida dele tudo se foi e eu já não sou nada nem ninguém. As pessoas acham que estou bem porque converso e conto piadas, mas é só uma fachada…lembro-me do que é ser normal e tento imitar. Eu quero ficar bem, mas sou fraca e estas saudades… estas saudades. Quando eu me ia abaixo ele me consolava e sempre quis cuidar de mim. 

      Sinto o dentro de mim o tempo todo como se fosse uma extensão minha. Como se tudo o que vivemos tivesse criado um chip na minha mente e para qualquer lugar que olhe é só a ele que vejo. Já não são apenas os poucos contatos que temos, mas tudo me leva àquele lugar que era nosso. Dias de sol em que passeávamos no parque, dias de chuva em que ficávamos enrolados na cama, a frescura da água com gás, o ácido das frutas verdes que ele gostava. Ele está em todo lado e ao mesmo tempo eu estou tão só. Parece que estou num poço escuro e ele é a luz que brilha na fora, mas não me chama para viver o dia com ele.

      Homem – Tenho a certeza de que o Leo foi muito feliz contigo. E que se sentia útil ao teu lado. Sentir-se assim faz sempre bem.

      Mulher – Sentes-te só?

      Homem – Só sinto a falta de uma pessoa.

      Mulher – Sinto uma culpa tremenda pela minha solidão. Como se eu mesma tivesse me trancado numa prisão e perdido a chave.

      Homem – Os sentimentos dão nos razões para querer viver mais tempo.

      Mulher – Ou não.

      Homem – Eu estava a ir tão bem…

      Minha mãe costuma dizer que a vida é como um carrossel. Só podes entrar uma vez. Vai haver momentos que vais estar em cima, outros em baixo, mas acima de tudo vais ter amigos ao teu lado a tentarem se divertir contigo. Vai haver momentos em que olhamos à volta e vemos tudo colorido, animado e com luzes. Mas uma hora, para de rodar.

      A Mila sabe o quanto sinto a fala dela. Mas também sei que as mudanças são uma contante na vida. Vai haver momentos em que temos tudo e outros em que vamos ter de descer do carrossel.

      Não te estejas a culpar desta forma. Nem precisas de tentar encontrar um substituto para o Leo. Mas procura antes uma razão para ti, para ainda estares aqui. Sei que te preocupas com as pessoas. Que neste momento é só esta capa de pesar que não deixa ser quem és: gentil, inteligente, sensível.

      Mulher – E sexy. Dizes isto porque faço-te companhia para não pensarem que és louco a falar sozinho.

      Homem – (ri-se) O Leo viu isto tudo em ti. Podes estar a sofrer, mas tornas o mundo um lugar melhor com esta tua maneira de ser. 

    • Carrossel | III Acto – Barganha

      Janeiro 24th, 2023

      A mulher está sentada no banco. O homem chega e senta-se ao seu lado.

      Mulher – Já estava a pensar que tinhas ido fazer companhia à Mila.

      Homem – Um dia. Esta é a única certeza que tenho na vida.

      Mulher abre um grande sorriso e dá um pequeno salto sentada de entusiamo.

      Mulher – Ele respondeu!

      Homem sorri de leve.

      Mulher – Falamos do trabalho, dos cursos que estamos a fazer. Falamos da minha mãe e dos pais dele. Falamos de família e de coisas em comum. Acho que a porta não está totalmente fechada.

      Homem – Os teus olhos ficam mais bonitos com este brilho.

      Mulher – Adoro o facto de me elogiares porque sabes que vou começar a me sentir culpada.

      Homem – O que tencionas fazer agora?

      Mulher – Voltar a me aproximar aos poucos. Não quero assustá-lo.

      Homem – Mas ele deu a entender que também quer isso?

      Mulher perde um pouco o entusiamo.

      Mulher – Mila, ele está a esfriar o meu ânimo. Faz alguma coisa, sim?

      Homem – O quanto aquilo que olhas ainda é apenas um reflexo do que viveste e o quanto é realidade?

      Mulher – Somos ensinados a vida toda a acreditar, a correr atrás dos nossos objetivos. O que sei é que não quero deixar essa luz se apagar.

      Homem – Acreditas que ele volta?

      Mulher – Talvez seja igual à forma como as pessoas olham para a existência de Deus. Talvez nem acreditem, mas é conveniente acreditar para que não custe tanto.

      Homem – Pois. Se Deus existe é melhor ter uma boa desculpa.

      Mulher – Como Buñuel, eu sou ateia. Graças à Deus.

      Homem – Por Ele existe algo em vez de nada. Leibniz.

      Mulher – Pelo Leo eu vou continuar a acreditar que reverto a nossa separação.

      Homem – Mesmo estando ele com outra pessoa.

      Mulher – Mesmo estando ele com outra pessoa.

      Mulher – Como é que conheceste a Mila?

      Homem – Foi no metro. Apanhávamos a mesma linha todos os dias, mas em lados opostos. Um dia ela desceu as escadas do mesmo lado que eu da plataforma e parou ao meu lado. Perguntou-me as horas. Disse-lhe que eram as mesmas do relógio dela. Desde então decidimos passar o nosso tempo juntos. E assim foi.

      Mulher – E assim continua a ser.

      Homem – O amor é como uma planta que se deve regar com a quantidade certa de água, adubar periodicamente, proteger do frio, colocar ao sol nas horas certas. Se soubermos cuidar, a raízes crescem fortes, bem estruturadas e com o tempo colhemos os frutos.

      Mulher está pensativa.

      Mulher – Eu estou a tentar. Ponho-me a par da vida dele. Envio-lhe mensagens relacionadas com assuntos que sei que ele aprecia. Ligo para a mãe dele. Damo-nos muito bem. Tento me manter por perto à distância. Não quero que ele me veja como uma predadora.

      Homem – Achas que isso o trará de volta?

      Mulher – É a única coisa a qual consigo me agarrar neste momento.

      Homem – Cada um alcança a verdade que é capaz de suportar.

      Mulher – (indignada) Aceitaste a partida da Mila com esta mesma leveza?

      Homem – Não. Mas de cada vez que me lembro da vida que tivemos, sinto-me o homem mais sortudo do mundo.

      Homem – O verdadeiro sofrimento é passar por uma doença, como ela passou. Ela encarou todo o pesar com tanta dignidade que seria injusto com ela se eu não me esforçasse por continuar a ser a pessoa que ela viu em mim. Nunca superarei a perda dela. Mas a dor transformou-se em paz porque acredito que é assim que ela está agora.

      Mulher está comovida.

      Mulher – Sinto tantas saudades dele…

      Homem a consola colocando uma mão no seu ombro.

    • Carrosel | II Acto – Raiva

      Janeiro 23rd, 2023

      O homem está sentado no banco. Entra a mulher de forma pesarosa e senta-se logo ao seu lado.

      Homem – Estás mais magra.

      Mulher – Nem uma taça Itália da Conchanata é capaz de me abrir o estômago.

      Homem – É curioso como o nosso estômago funciona como um cérebro emocional.

      Mulher – Apetece-me bater com o meu contra a parede.

      Homem – Haverias de fazer uma figura engraçada. Mas quem visse ia pensar outra coisa.

      Mulher – Simplesmente não consigo acreditar que isto me aconteceu. E que de certa forma fui eu a causadora da minha desgraça.

      Homem – Um relacionamento não se faz sozinho. It takes two to tango, não é o que dizem?

      Mulher – Mas fui eu a terminar a relação.

      E agora sou eu a levar com o luto…Não consigo lidar com esta perda.

      Homem – Oh, muito obrigado. Pensava que estávamos no bom caminho. Já estava a pensar no quanto iria cobrar por estas sessões…talvez até fizesse obras na sala…

      A mulher ri levemente pela tentativa do homem de amenizar a sua culpa.

      Mulher – Como é que superou a perda da Mila?

      Homem – Levou o seu tempo. Quanto maior o compromisso, maior o luto. Foram 40 anos de um casamento feliz e há 2 uma tentativa diária em lidar com as memórias e com a ausência que ela deixou.

      Mulher – És feliz?

      Homem – Sou feliz porque apesar de quem eu mais amo não estar cá sei que temos boas recordações. Prefiro estar vivo com saudades dela do que o contrário. É o quanto a amo.

      Mulher – O Leo anda por aí.

      Homem – Talvez ele esteja perdido.

      Mulher – Sim, talvez. Mas ele não me atende. Não responde às minhas mensagens.

      Nós estávamos a tentar pela terceira vez estarmos bem, ficarmos juntos…o nosso amor foi forjado ao longo de 7 anos com suor e lágrimas. Idas e vindas. Acho que não tivemos a maturidade necessária para saber lidar com as nossas histórias individuais.

       Eu deixei uma vida construída, estável, para trás por ele, por nós. Mas não esperava que isso me levasse ao lugar de tristeza, de desconstrução que me levou. E depois…toda a alegria de reconstruir uma vida com ele parecia ser apenas um peso a ser carregado. E com o qual eu não conseguia suportar.

      Homem – O que vos aconteceu?

      Mulher – Eu não fui capaz de lidar comigo mesma e tinha tanto medo de que a minha tristeza o afetasse que pedi para ele sair da minha vida.

      Mas o nosso amor era tão bom que ele voltou. Voltou, mas sem fé. Cauteloso, como ele dizia. Receoso de amar. E aí eu já não o reconhecia. Já não era o meu Leo. Parecia que havia uma fadiga emocional entre nós. Varava noites a pensar no quão indigno e errado isto era comigo. E pedi para ele ir embora. Mais uma vez. E desta vez, ele foi de vez. Sem olhar para trás. E eu fiquei só. Eu e a minha dor.

      Homem – O luto é o preço que pagamos pela coragem de amar os outros.

      Mulher – Eu não consigo mais ser corajosa. Já não tenho força pra isso. Penso tanto nele que já não consigo dormir. Só consigo me sentir frustrada por ter sido tão precipitada e saber que agora já não consigo voltar atrás.

      Homem – O que te leva a pensar isso?

      Mulher – Ele já tem outra.

      Homem – Apressado o rapaz.

      Mulher – Leva-me a crer que já planeava isso. O que só me deixa com mais raiva.

      Homem – Não consegues controlar tudo o tempo todo. Estás a sofrer, mas o que perdeste é o mesmo que pode acabar com esta angústia.

      Mulher – Onde é que eu arranjo isto? Diz-me já.

      Homem – Começa por aceitar a perda.

      Mulher – Não. Nunca! Nunca vou desistir dele! Já pensei em desistir de mim, mas nunca dele.

      Homem – É sempre bom ter um plano B.

    • Carrosel | I Acto – Negação

      Janeiro 22nd, 2023

      Um homem está sentado num banco a gesticular e a ter um monólogo com a campa à sua frente quando uma mulher entra em cena.

      Homem – …E foi aí que percebi como conseguias deixar os filetes tão crocantes…

      A mulher observa o em pé.

      Homem – Deves achar que estou a ficar louco, não?

      Mulher – É só assim que eles respondem.

      A mulher aponta para o banco. O homem chega-se para o lado.

      Mulher – Nunca me deu para falar sozinha. Provavelmente iria discutir. Atrapalho?

      Homem – De todo. Eu e a Mila gostamos de ter companhia nas nossas conversas.

      Mulher – Acho que o telemóvel do Leo ficou sem bateria.

      Homem – A Mila não levou o dela. Deve ser por isso que dizem que se vai para um mundo melhor.

      Mulher – Mas ainda espero uma resposta dele. Ainda dou um salto a cada vez que recebo uma notificação. Ainda acordo de madrugada a achar que ele só está a se demorar na cozinha e já volta…

      Homem – Se era importante, vai levar o seu tempo.

      Mulher – Que tempo? Ele vai voltar. ELE VAI VOLTAR. Não tarda ele vai voltar…às vezes acho que isto tudo é só uma alucinação.

      Homem – Vitamina C é o único ácido que se recomenda. Pelo menos de manhã.

      O ambiente fica aligeirado. 

      Mulher – Este é o vestido com o qual ele mais gostava de me ver. Para o jantar planeio bacalhau à Brás. O Leo adora bacalhau.

      Homem – A Mila cozinhava muito bem. Adorávamos receber os amigos em casa. Por muito tempo foi difícil fazer as refeições sozinho. Cheguei a trazer o almoço para cá, mas as formigas me persuadiram de que era má ideia.

      Mulher – Eu continuo com a minha rotina. Se nada vai mudar os factos então eu também não vou mudar nada.

      Homem – Vais recalcar?

      Mulher – És psicólogo?

      Homem – Sou viúvo.

      Mulher – Eu sou namorada. Sou a futura mulher de um homem, do melhor homem que alguma vez conheci e que apenas está a se demorar para voltar para casa.

      Homem – Ah, sim. A bateria do telemóvel. Talvez o GPS apenas esteja a recalcular a rota.

      Mulher – É talvez. Ele nunca foi bom com orientação.

      Homem – Mas estava bem orientado quando te conheceu.

      Mulher – Estava perdido. E juntos encontramos o nosso caminho. E sem ele, já não sei para onde caminhar.

      Homem – Para onde o Leo te levaria se estivesse agora a segurar na tua mão?

      Mulher – Para casa. Para planearmos as férias de verão na Itália e todos os passeios pelos Alpes Julianos.

      Homem – E o que te impede de fazê-lo?

      Mulher – Agora estou aqui. Tenho de esperar que o Leo volte. Ele sempre soube escolher os melhores hotéis.

      Pausa.

      Mulher – Vou passear o cão enquanto espero por ele.

      Homem – E depois desfiar o bacalhau.

      Mulher – Exato!

    • Alex Aquibar no divã

      Janeiro 14th, 2023

      Começou com uma pequena equação: x + y = me.

      Eu ainda me assemelhava a um girino quando os pais dele vibraram ao saber que eu seria o responsável pelo nome, o quarto azul e a camisola encarnada do clube. Quando vi a luz do dia, depois de estar 9 meses aprisionado, permiti que todo o sumo de manga, o leite de soja e aquela lambreta da noite anterior fossem expelidos de forma a causar inveja ao Esguicho Manuelino. As enfermeiras correram a limpar, a médica riu-se, a mãe deliciou-se. Ele aliviou-se. Toda aquela atenção em torno de mim…seria impossível não pensar: estava ali alguém de valor.

      Posso igualmente dizer que fui o seu primeiro brinquedo. Nas tardes de ócio a seguir à sesta eu era o Minhocas. Comigo ele se entretinha, ocupava, acalmava naturalmente. Eu era um género de Play-Doh que dava asas à sua criatividade e foi por volta desta fase que conhecemos o hedonismo idílico puro e pueril. Por essa altura Ele tinha 6 anos e via no seu pai um modelo com quem se identificar ainda que não soubesse muito bem o que isto era. Mas gostava da felicidade que a mãe exalava depois de estarem juntos.

      Foi num fim de semana que a primeira mudança se deu. Era um daqueles raros domingos de sol em Peniche, a praia estava cheia e eu podia sentir que a preocupação dele era que o seu castelo de areia contruído à beira de um mar que estava a encher não desabasse. Veio uma onda mais forte e com ela, Carolina. Loira como os raios do sol. Talvez tenha sido este facto que de alguma forma marcou a sua preferência daí para frente. Pediu para me conhecer e Ele entre a incerteza do que fazer e a excitação da surpresa pareceu involuntariamente direcionar o sangue do seu cérebro para mim, permitindo à Carolina puxar o elástico que prendia o seu calção de praia azul com estampa de âncoras brancas. “Mostro-te o meu também. E assim guardamos o segredo um do outro.” Entramos num novo mundo, numa nova fase da nossa relação. E eu aprendi que aquilo que a Carolina lhe despertava fazia com que aquele meu corpo de plasticina se transformasse num souvenir das Caldas da Rainha.

      Comecei a sentir alterações efetivas em mim quando a voz dele começou a mudar. Também o meu visual mudou. De Moby passei à Slash e tudo ganhava novas dimensões. Ele ainda não sabia muito bem o que fazer comigo, dado que eu crescia na mesma velocidade que ele e muitas vezes o obrigava a comprar pares de calças novas já que – estando eu numa idade de rebeldia – acabava muitas vezes por rasgar o cavalo das Levi´s 501.

      Mas Ele era tímido, não tinha a iniciativa necessária para dar vazão ao que nós – e particularmente eu – guardávamos e partilhávamos. Um dia seu pai esqueceu o jornal na sala e ao folheá-lo Ele encontrou uma série de números de telefone num anúncio que prometia uma sensação “nunca antes experimentada”. Mas o buraco do discador era muito pequeno e acabou por desistir. Ele sentia-se solitário, mesmo sabendo que que eu estava ali e que com a sua mão amiga estendida, pronta para me acolher…quem precisava delas?…Ele precisava! E a medida que crescíamos isto tornava-se mais evidente.

      No dia em que completou 18 anos pediu aos pais uma viagem. Estávamos os dois sozinhos como sempre, mas desta vez num bar em Amsterdão. Ele reparou que o álcool era um bom aliado para ultrapassar a barreira de um primeiro contato, ainda que eu não conseguisse achar a mesma piada. Alguém ia se chatear. Ela disse que vivia num sítio chamado De Wallen. Ele só falava inglês e achou que aquela informação não tinha qualquer importância. Era loira – não como a Carolina; esta parecia que tinha passado demasiado tempo sob o sol de Peniche da terra dela – alta e magra e conhecia todos os homens com quem nos cruzamos ao logo do canal. Ele sentia-se um sortudo por ser o escolhido e eu…bem…eu estava a tentar me conter porque sentia que algo tão grande como eu me encontrava estava prestes a acontecer. Daquela noite, pouco me lembro. Até consegui me sentir confortável naquela capa de látex, que me deu a cobertura que um sniper daria aos seus numa investida, quando entrei para aquele estranho e desconhecido mundo. Mas foi estadia de pouca duração. Não sei se pelo entusiamo dele, pelo aroma inebriante que paira constante naquela cidade ou pelos cinco Jenever. O que sei é que na manhã seguinte eu e Ele tivemos de voltar a pé para o hotel porque loira e carteira haviam desaparecidos.

      Os anos passaram e de pouca companhia nós desfrutávamos. A verdade é que Ele também era seletivo e quando encontrava alguém que só estava interessado em lustrar o meu escalpe, saltava fora. Era o código da nossa irmandade: ou temos permissão para mergulhar e ir até o fundo da piscina ou nem entramos no clube. No novo trabalho Ele começou a sair mais com os colegas que o levaram à um lugar com muitas miúdas parecidas como aquela de Amsterdão, mas que já falavam a sua língua. E gostavam muito dela. E de mim! Especialmente de mim. Uma delas que parecia ter canela com açúcar na forma como pronunciava os tês e os ésses disse que tinha uma surpresa para Ele. Não me venham dizer que aquele lugar era bom porque não era: eu mal lá cabia, o ambiente era mais seco que o calcanhar gretado dele e podia-se ver que ela havia almoçado feijoada transmontana. Mas pela amizade, para não o deixar ficar mal, porque é nestes momentos de aperto que ajudamos um ao outro, lá lhe dei o que ele queria e ela implorava não sei como. Gosto do aconchego, mas preciso de um mínimo de espaço de manobra para…gozar o momento.

      A partir daí Ele se tornou mais desinibido. Pelo menos para isso aquela experiência traumática me serviu. Estive em lugares novos, alguns com um pórtico deplorável a cair para os lados, outros que me faziam pensar que havíamos voltado aos anos 70 e outros ainda que lembravam o turbolance do aquaparque de Amarante com entrada livre e desimpedida.

      Numas dessas idas e vindas, Ele conheceu a Samanta. Ela tratava-me mal, dava-me pouca atenção e na verdade até acho que tinha ciúmes da minha relação com Ele. Mas Ele gostava dela e eu ia aceitando. Um dia acabou por acontecer de eu lhe deixar literalmente de mãos a abanar. A equipa dele ganhou o campeonato nacional depois de 15 anos nos lugares mais baixos da tabela. Dez príncipes, três CRs e um duplo XO deixaram-no mergulhado num tal estado que se me dissessem que Ele seria dissecado eu acreditaria. Com muita dificuldade Ele chega à casa e lá está a Samanta. Não lembro da conversa – até porque quando ele se encosta àquela rulote junto ao Alto dos Moinhos, já sei que vai ser uma noite para esquecer mesmo – mas o que sei é que ela queria comemorar e que a dado momento fui chamado para fazer par com as suas cordas vocais. Eu estava demasiado embriagado para cantigas e na manhã seguinte, já não havia ninguém para me maltratar o coiro. Honestamente não lhe fez grande diferença e voltamos a nossa rotina de bros.

      Foi aí que a Nina entrou na vida dele. Foi a primeira e única a reconhecer o meu valor batizando-me de Hulk porque eu mudava de tamanho quando ela mexia comigo. Não havia lugar nela onde eu não estivesse feliz. Carinhosa e selvagem ao mesmo tempo foi com ela que conheci o sentido da vida. Ela levou-me para o meu primeiro banho de mar a sério e ajudou-me a me entender melhor. Tudo rodava em torno de Nina. Ou melhor, Nina é que rodava em torno de mim. Aliás se agora estou aqui é por causa dela. Percebi que eu tenho uma voz própria e não sou apenas uma antena emissora dos desejos mais profundos dele. Na, não! Até que um dia ela deixou de aparecer. Eu não tive tempo de perceber o que se passara porque rapidamente apareceu outra pessoa.

      Débora era mais madura e isso notou-se logo à partida. Ou melhor, à entrada. Ela era uma feminista intelectualóide e deixou logo claro que eu era como a opinião política: é ótimo ter desde que não lhe enfiasse goela abaixo. Há pouco e pouco nossa relação foi ficando distante. Senti que ela reprimia o verdadeiro eu dele e quanto mais isso acontecia mais eu era abafado até chegar ao ponto de parecer uma banana que ficou esquecida dentro de um saco plástico no porta mala do carro durante todo o mês de agosto. Fui forçado a me reduzir à mera função mictória a favor da ditadura do estrogénio.

      Não posso continuar a permitir isso! Estou farto de ser escravo dos melindres dele e dela e por isso quero a minha independência!…

      Se estou feliz ao dizer isso? Claro que não! Mas Ele quebrou o contrato que tínhamos, esqueceu-se dos desertos e dos túneis que atravessamos juntos. Isso não se faz. O que pretendo fazer? A verdade é que dependo dele. E Ele de mim. Somos indissociáveis e ele sabe que sou uma extensão da personalidade dele.

      Humm…estava aqui a ver…o Super Kamarga está sem portes de entrega e o Pornhub estreou uma nova categoria. Um priapismo é tudo o que eu precisava agora para me sentir vivo de novo. Lembrei-me que Ele tem uma vizinha nova. Talvez pudesse chamá-la para um café. Afinal, como diz o poeta “não farás nem terás bicos sem bicas”. A vida é curta e fica mais dura com o tempo. Menos a minha. Há que se aproveitar.

    • Saliva

      Janeiro 14th, 2023

      João apresentou-me Matilde.

      Não me peçam para estar o tempo todo a pensar em artigos e na regência dos verbos. Minha mãe se ler isso ainda lhe dá um treco. Mas, mamãe, eu amo a língua tanto que a deixo correr solta como um filho brinca na lama num dia de chuva e suja a roupa alva acabada de engomar. É assim mesmo e a gente sabe, mamãe: a roupa foi feita para cobrir o corpo da criança que brinca alheia as horas que se passaram para fazer uma camiseta branca, limpa e bem passada, onde se estampa o seu zelo.

      É essa a liberdade destas linhas.

      João apresentou-me Matilde.

      Ele sabe que eu gosto de poesia. Ele disse “leva o jóquei”. Eu levei. E mais outro. Foram 19 anos até eu conhecer o João. Eu sou paciente. Ele é mais novo que eu. Ele me levou para uma balada de sonho e me trata por diminutivo querendo me aumentar porque sabe que no diminuto cabe a grandeza de um piano forte. Altruísmo e generosidade caminhando lado a lado. Um dynamic duo. E ele ama a mulher dele.

      Mas ele me apresentou a Matilde e também o Pedro. Mexia disse que ela escreve português em dupla nacionalidade e dupla grafia. E isso foi como quem pega na minha mão e diz que eu também sou portuguesa. Nascida na junção do 23 com o 46 do trópico de capricórnio e essa língua-árvore frondosa no DNA. Que forma um caleidoscópio por entre as frestas das folhas que deixam passar a luz desenhando formas na sombra. É a mesma planta, o mesmo sol.

      Daí vai que Matilde foi comigo de viagem.

      Na madrugada insone quis saber o que ela tinha a me contar. O espírito já talhado torceu o nariz, tamanha a minha ignorância. Ao terceiro dia feito sétimo o raio da epifania fez-se ouvir com o ronco do 320. “Deixe-se de coisa, menina! Vá ser quem você quiser, quem tu quiseres.” Não me peçam para pensar o tempo todo no sítio-lugar dos pronomes pessoais. Isso lá dá jeito para a palavra?

      Deixa-a pensar que a lama é a piscina da Praia das Maçãs e a chuva as Cataratas do Iguaçu.

    • Estremecida

      Dezembro 25th, 2022

      O sol ilumina a água e o seu frio brilhante fazendo estremecer os ossos dos meus pés.

      Pode ser uma ideia desvairada mas se até as flores bebem da jarra fazendo parecer o poema que desce pela caneta, também essa sensação percorre o meu corpo num sentimento de arrepio e dormência que me faz querer dançar na agonia furibunda de uma vida que só quer um sentimento de alguma espessura para cantar com a loucura que dá espinhos na garganta e sangrar nas rotas da vida na busca pela velha casa infância agora já envelhecida.

    • Fumo

      Dezembro 25th, 2022

      Há uma verdade na tristeza que impulsiona a força de criar

      Como o fumo que se exala e pinta de branco a noite escura e fria

      E onde se expira o que se quer compreender

      Explicação não encontrada no gesto repetitivo.

      Dormência adquirida em cada aspiração suspensa

      Que se apodera do corpo e o levita

      Mas não o suficiente para lembrar

      Que na noite escura e fria

      Há um chão onde se pisa

      Que será o mesmo quando só restarem as cinzas

      Resquícios de uma busca por uma verdade já conhecida.

    • We cannot find peace by avoiding life

      Dezembro 25th, 2022

      A primeira vez que entrou no mar deixou que a água lhe chegasse até ao pescoço.
      Sentiu o frio eriçar cada pelo do seu corpo como se fossem algas num lento bailado presas a um coral.

      Notou que esta sensação se misturava com o que sentia na barriga num fluxo osmótico imaginado parecido com os que já havia visto no livro de ciências da irmã.
      Os dedos dos pés, qual minúsculas retroescavadoras, já mal colhiam a areia, metro e meio abaixo de si.
      Estava prestes a levantar voo numa imensidão azul e não sabia voar.
      Nem nadar.

      Olhou para o horizonte,
      quis saber como havia tanto mundo se não conseguia ver nada depois daquela linha.
      O que há para além é o que ainda não conheci, pensou decidida.

      O desconhecido próximo veio numa onda. Não que tenha se surpreendido mas concluiu que por muito que já esperasse por ela, não foi como imaginara. Não mergulhou como a sereia dos desenhos animados.
      Água nariz a dentro, sal nos olhos, cabelos na cara.
      Atingida por novas e ameaçadoras sensações num ambiente que não controlava.
      Antes mesmo de ter pisado a beira da praia, fantasiava ser uma heroína que controlava as forças da natureza. Jogava bolas de areia nas ondas para aplacar a sua fúria qual virgem vudu atirada ao vulcão.

      Aturdida pelo que passara, decidiu-se por aprender a estar ali. Fruiu a falar com a água como se também fosse um elemento e pudesse dissolver-se nela.

      Foi apanhada desprevenida pela segunda vaga, esta mais forte. Bolhas de ar a rebentarem, o nariz tapado em baixo daquela desordem, braços e pernas a procurar pela luz da superfície. Inspirou aliviada. Com força. Orgulhosa do seu pequeno feito. O ar que absorvia dava-lhe fé.
      E alimentava de energia suas veias transformadas em rio que ali desaguava.
      Mas tinha medo.

      Tinha medo daquela imensidão imprevisível.
      Tinha medo que algum bicho aparecesse e lhe puxasse deixando a sem escapatória.
      Tinha medo do que não via, do que não conhecia.
      Mas foi o medo de não se sentir viva que a manteve ali.
      Queria experimentar aquilo.

      Havia uma sensação de possibilidade tão grande que a fez compreender a dor e a felicidade, o escuro do desconhecido, a curiosidade obstinada: era a vida ali, a acontecer.

      Olhou em frente e descobriu-se no palco. O horizonte, tornado plateia. O sereno marulhar desfez-se em palmas.
      Estava em paz.

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