Ontem como hoje

O Luso-tropicalismo como doutrina definidora do caráter português

No passado dia 08 de maio, o músico Luca Argel deu uma entrevista ao jornal Expresso onde falava como a glorificação do passado colonial reiterada pelo Estado Novo tornou-se num “afeto” lusitano. Foi impossível não sentir empatia pela sua fala, especialmente depois de ter relido “O Retorno” de Dulce Maria Cardoso. Mais recentemente num artigo de opinião do mesmo jornal, João Vieira Pereira falava daqueles que estão a crescer e da maioria – absoluta – na qual eu me identifico, que sofre de tantos problemas sociais, sendo o maior deles a diferença entre o rendimento e os custos com a habitação e impostos.

Ao refletir sobre o que li, o estado das coisas e o espírito das pessoas, lembrei-me que houve um momento em particular onde a lusitanidade marcada pela luz lisboeta – sobretudo -, o calor do sul mediterrânico e de seu povo, embalados pelo marulhar do Tejo, pareceram ter contaminado o mundo. O resultado é que no espaço de pouco mais de um ano, onde fomos campeões europeus de futebol, vencedores da Eurovisão e nova morada de uma estrela pop da música, o turismo passou por um boom cujas canas ainda estão a ser apanhadas pelos portugueses. Como brasileira mas mais portuguesa pelos 21 anos de casa, revejo-me nesse fim de festa agachada e com dificuldades em levantar. Enquanto reúno forças, fica aqui um teto que escrevi sobre o luso-tropicalismo, a doutrina que, de certo modo, ajudou-nos a ser quem hoje somos e trazer-nos aonde estamos.

Nota

Ao pesquisar sobre o luso-tropicalismo pude constatar que esta teoria se encontra incorporada no comportamento de brasileiros, portugueses ou luso-brasileiros. O tal “jeito de ser” vem desta amálgama de culturas na qual nos formamos e onde tivemos que encontrar algum senso comum para vivermos, de uma forma geral, em paz e harmonia – à parte das clivagens sócio raciais ainda presentes no Brasil, sobretudo.


Desde a ideia romântica, pseudo-nostálgica que muitos portugueses ainda hoje guardam de um Brasil que apareceu pelas novelas com o tropicalismo da Gabriela do Jorge Amado, através da empatia que os portugueses – comerciantes, padeiros, artistas… – demonstravam em terras tupi, o ser e estar luso-tropical foi antes, como demonstrado nas seguintes linhas, ferramenta académico-política e, se repararmos bem, de alguma forma continua a ser. Veja-se como exemplo o boom turístico pelo qual Portugal – Lisboa, especialmente – viveu, e vive ainda, desde 2017. O português é simpático, empático, é tolerante, afável. A imagem vendida ao exterior é da maleabilidade social portuguesa. Ainda que para tal, aqueles que cá vivem, tenham que suportar a transformação da economia local a favor daquilo que de alguma forma, tornou-se parte da própria política externa portuguesa: Portugal é um país global assim, todos são bem-vindos.


À propósito de similitudes interculturais, Chico Buarque de Holanda tem uma peça que demonstra bem isso, e que de alguma forma parece ter sido sempre a intenção de Gilberto Freyre com a sua teoria luso-tropical, ainda que o cantor aplique sua arte com algum pendor político contestatário. “Fado tropical” foi composto em 1973 para a peça “Calabar ou o elogio da traição”. Sugerindo painéis de azulejo à moda portuguesa do século XVIII, Chico Buarque e Ruy Guerra, cineasta moçambicano, propõem nesta canção um retrato crítico do Brasil colonial, que corresponde em filigrana ao país tal como se encontrava sob a ditadura civil-militar. Na confluência entre pintura, história e literatura, os dois artistas compõem uma série de paisagens e de naturezas mortas luso-tropicais. Através deste jogo metafórico, tornado ainda mais complexo pela censura, “Fado Tropical” esboça uma nova “aquarela do Brasil”, ambivalente e irónica, que sugere a permanência do autoritarismo ibérico na formação histórico-cultural das futuras ex-colónias portuguesas tendo o Brasil como seu protagonista.

Preâmbulo

O luso-tropicalismo, doutrina elaborada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, veio à luz do conhecimento a partir da publicação em 1933 da sua magnum opus Casa-grande & Senzala, tendo sido desenvolvida posteriormente em outros trabalhos, concluindo em 1961 com a publicação de “O luso e o Trópico”. Curiosamente, 1933 é também o ano da entrada em vigor da Constituição do Estado Novo, que coloca o Acto constitucional como matéria colonial.

1961 marca igualmente o início da guerra colonial em Angola, da abolição do estatuto do indígena e da perda da Índia portuguesa. Adriano Moreira, Ministro do Ultramar na altura, introduz no discurso académico nacional o conceito do “modo português de estar no mundo”, que rapidamente se operacionaliza e reproduz no discurso do Estado Novo. Pressupõe que o povo português tem uma maneira particular de se relacionar com outros povos, culturas e espaços físicos, maneira que o distingue e individualiza no conjunto da humanidade.

Essa maneira é geralmente qualificada com adjetivos que implicam uma valoração positiva: tolerante, plástica, humana, fraterna, cristã. De acordo com Cláudia Castelo, investigadora no Instituto de Ciências Sociais-UL, “o luso-tropicalismo, teoria inventada com base em pressupostos históricos, e numa imagem essencialista da personalidade do povo português, além de ter servido interesses político-ideológicos conjunturais durante o Estado Novo, ajudou a perpetuar uma imagem mítica da identidade cultural portuguesa, concedendo-lhe a identidade científica de que até aí não dispunha. A influência do luso-tropicalismo ter-se-á alargado, progressivamente, do campo cultural para o campo político, e deste para o das mentalidades”.

A doutrina

Na obra “Um brasileiro em terras portuguesas”, Freyre confessa que nessas suas incursões por terras lusitanas, sentiu confirmada uma intuição antiga e encontrou a expressão que lhe faltava para caracterizar aquele tipo de civilização lusitana que, vitoriosa nos trópicos, constitui hoje toda uma civilização em fase ainda de expansão. Essa expressão – luso-tropical – parece corresponder ao facto de ver a expansão lusitana na África, na Ásia e na América manifestando evidente pendor, da parte do português, pela aclimação, como que voluptuosa e não apenas interessada em áreas tropicais.

A especificidade da personalidade do português como sendo inaptamente propenso à flexibilidade intelecto-cultural sem abdicar do essencial do seu caráter conquistador: nesta origem está o parentesco sociológico português com os árabes na Península Ibérica. Freyre defende que o método mouro de “conquista pacífica” de povos, de raças e de culturas foi assimilado pelos lusos e posto ao serviço da expansão cristã nos trópicos. O português, à semelhança do árabe, primou não só pela mistura racial, mas também pela adaptabilidade ao meio e à cultura do conquistado ao mesmo tempo que, ao fundir-se noutros povos, nunca teria perdido o sentido religioso da vida. A ideia de que a expansão portuguesa teria sido animada por “desígnios cristãos” conhece, no âmbito da formulação do luso-tropicalismo, novos contornos. O povo português seria aquele que é motivado à ação mais por este pendor que o aspeto etnocêntrico, sendo esta característica algo também apreendido dos árabes maometanos, o que levaram aqueles a ficarem conhecidos na Ásia, por exemplo, por cristão e não por “luso”. Uma forma de ser una, o que contribuiria para a mítica ecuménica do português materializada através da procriação e dos costumes sociais.

Através de métodos de integração e não de subjugação, o português soube buscar na experiência dos outros povos, valores, técnicas e costumes que lhes permitissem viver em harmonia com as condições físicas e humanas tropicais sem, no entanto, deixar de ser cristão e civilizado. Note-se, porém, que esta plasticidade não se revela exclusivamente na adoção de valores alheios, mas também “na adaptação de valores europeus, transformados ou modificados, aos meios tropicais”. É o caso, nomeadamente, da língua portuguesa e do cristianismo. Freyre conclui que existe uma arte lusitana das relações humanas, das adaptações culturais, das transações sociais em espaços e terras quentes; uma arte que fez do segundo vice-rei português da Índia, Afonso de Albuquerque (1462-1515), pioneiro de uma política sistemática de casamentos mistos na Índia, e tem a sua concretização plena na simbiose luso-trópico. Assim, é português qualquer indivíduo “social e culturalmente português; e que tanto pode ser amarelo, pardo, vermelho, preto, como branco”. É essa superação da condição étnica pela cultural que caracteriza a civilização luso-tropical; na prática, uma cultura e uma ordem social comuns a homens e grupos de origens étnicas e procedências diversas, acomodados a algumas constantes de comportamento fixadas pela experiência lusitana nos trópicos.
Dentre as principais características do luso-tropicalismo, o conceito de área total é fundamental. Junto a esse, impõe-se o de região. Por “área total”, designará o “conjunto de espaços tropicais hoje ocupados pela gente lusitana ou de origem principalmente lusitana ou portadora de cultura principalmente lusitana: conjunto do qual o Brasil se destaca como sua maior força atual”. Entenda-se o caráter transnacional que é imanente à definição de área total. Freyre acreditava que tal termo esquivava a pesquisa de eventuais preconceitos nacionais, o que poderia acontecer se esta estivesse determinada operacionalmente por um conceito como o de Estado ou de Nação. Refira-se, por outro lado, o acentuar da tendência para a generalização. Do “sucesso” brasileiro, Freyre volta a tirar ilações aplicáveis a todos os espaços colonizados por Portugal. Os fatores culturais portugueses, em contacto com qualquer região, povo ou cultura das terras quentes, dão origem ao mesmo processo simbiótico de criação de sociedades luso-tropicais. No seu conjunto, formam uma civilização com traços próprios que a distinguem e individualizam.
Gilberto Freyre afirma que Portugal teria iniciado no século XV “um novo tipo de conhecimento caracterizado pela sua intrínseca aclimatização ou saber dos trópicos pelo europeu, para o qual se sugere a caracterização de luso-tropicologia”.  Vê-se assim que é um conceito sociológico que ultrapassa o apenas político ou retórico ou sentimental de ‘comunidade luso-brasileira’. Ao longo das produções seguintes, Integração Portuguesa nos Trópicos (1958) e O luso e o Trópico (1961), Gilberto Freyre começa a utilizar um tom mais político chegando mesmo a propor que a luso-tropicolgia possa a ser uma sub-ciência a ser introduzida nos currículos académicos. É esta ideia com pretensa científica que será aplicada pelo Estado Novo na defesa do Império colonial português.

Da teoria à prática

Até 1945, o pensamento de Gilberto Freyre em Portugal apenas conhecera uma boa receção no campo cultural. Da parte do poder político oscilou-se entre a rejeição implícita e a crítica aberta. Concluída a ocupação efetiva dos territórios coloniais, o Estado português apostava na afirmação do império, na extensão da máquina administrativa e fiscal colonial e na submissão dos indígenas, considerados povos selvagens, aos valores superiores de uma suposta raça portuguesa. Além disso, entre os mitos da fundação da nacionalidade destacava-se a “reconquista cristã”, feito heroico de destemidos soldados de estirpe europeia, o que não se compadecia com o relevo atribuído por Freyre  ao  fundo  árabe  e  africano  na  constituição  do  carácter  nacional português.

Nas décadas de 30-40 a mística imperial, próxima do darwinismo social, idealizada pelo ministro das Colónias, Armindo Monteiro, dava a tónica à política colonial, posicionando-se assim longe da teoria de Gilberto Freyre, baseada na mestiçagem. O ministro considerava que Portugal tinha o dever histórico de civilizar as “raças inferiores” sem acreditar numa convivência harmoniosa e fraterna entre brancos e pretos, tratando de proteger os “indígenas”, de os converter ao cristianismo, de os educar pelo e para o trabalho, de os elevar moral, intelectual e materialmente. A oposição entre civilizador e nativo acarreta a negação dos valores alheios e inviabiliza a perspetiva de reciprocidade cultural. Além disso, o modelo de desenvolvimento económico das colónias assentava na mera exploração dos recursos naturais e da mão- de-obra africana, através do trabalho forçado e das culturas obrigatórias, em benefício dos interesses da metrópole e dos colonos europeus.

Assim, naquela altura, a teoria de Gilberto Freyre não era bem aceite pois estava radicada na importância que o autor conferia à mestiçagem a formação do Brasil tal como ele é e que era o centro da teoria refletida na já citada Casa-grande & Senzala. Afirmando a carência de valor científico da obra, os antropólogos portugueses Germano Correia, Mendes Correia, o francês René Martial e Vicente Ferreira asseveravam que a mestiçagem produz efeitos nefastos: “degenerescências dos caracteres psíquicos e, porventura, também dos caracteres somáticos”. O retrato que faz dos mestiços, mulatos e crioulos, carregado de preconceitos, é extremamente negativo; descreve-os como “impulsivos, indolentes, em regra pouco inteligentes, pouco dóceis e pouco morais”.

Com o objetivo de impedir a miscigenação e mesmo o convívio entre brancos e negros nas zonas de colonização étnica, assim como a concorrência económica entre os trabalhadores das duas raças, propõem que se estabeleça e aplique com rigor uma política de segregação racial nas regiões de povoamento branco, que proibia, nomeadamente, a utilização de mão-de-obra indígena pelos colonos portugueses. Mesmo Norton de Matos, candidato da oposição democrática portuguesa às eleições presidenciais de 1949, colocava reservas quanto à miscigenação e a interpenetração de culturas por acreditar que enquanto não houvesse uma equiparação – que poderia levar séculos – entre branco e pretos, corria-se o risco de assistir uma deturpação dos valores civilizacionais europeus, como aconteceu no Brasil.

Entretanto, havia um aspeto do pensamento freyriano que foi aceite e utilizado posteriormente pelos colonialistas do regime: a especial propensão dos portugueses para a colonização.

A capacidade de adaptação dos portugueses aos trópicos, não por interesse político ou económico, mas por empatia inata, a aptidão para se relacionar com as terras e gentes tropicais e plasticidade intrínseca, resultaria da sua própria origem étnica híbrida e do longo contacto com mouros e judeus na Península Ibérica, nos primeiros séculos da nacionalidade, manifestando-se sobretudo através da miscigenação e da interpenetração de culturas. Este é o fundamento do luso-tropicalismo, que será utilizado pelo governo do Estado Novo a partir do final da II Guerra Mundial.

O princípio da autodeterminação dos povos colonizados foi consagrado na Carta da Organização das Nações Unidas, criada em 1945. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) a autodeterminação foi consignada como direito fundamental e a ONU passou a atribuir às potências coloniais a obrigação de prepararem os territórios sob sua administração para a independência.

Assim, o regime salazarista obrigou-se a uma nova definição do estatuto de suas colónias. Salazar sabia que era necessário tomar providências naquele momento de redefinição da geopolítica mundial ou o Império português sucumbir-se-ia às tendências liberalizantes e de nacionalismo autónomo que já estavam a ser formuladas desde a década de 40 com fortes possibilidades de efetivação na década de 70, como se veio a verificar.

O Presidente do Conselho de Ministros intentou novas práticas que pudessem restaurar a ideia de Império glorioso dos séculos XVI e XVII procurando a própria essência do seu regime nas práticas ditas civilizadoras da velha conquista colonial, sugerindo novas condutas para tentar assim recaracterizar o antigo território português, sendo o Acto colonial o documento mais emblemático considerado como a carta constitucional do colonialismo português contemporâneo. Este documento descrevia a prática de concessões aos seus aliados que permitiu ao governo salazarista manter as fronteiras do Império intactas ao longo da II Guerra Mundial, mas diante do pós-guerra, Salazar estava novamente sob pressão para que novas concessões fossem feitas, propondo mudanças na administração colonial para que tudo se mantivesse como tinha estado desde então. Tais práticas, entretanto, não foram obras apenas de Salazar. Para justificar suas intenções, contou com a parceria de alguns intelectuais, dentre eles, Adriano Moreira, membro da Junta de Investigações do Ultramar e criador do Centro de Estudos Políticos e Sociais e também Ministro do Ultramar e o sociólogo, antropólogo e ensaísta brasileiro, Gilberto Freyre. Adriano Moreira, juntamente com Sarmento Rodrigues, Ministro do Ultramar, foram os grandes responsáveis pela aplicação institucional da teoria do polímata brasileiro nas já referenciadas práticas reformistas.

A ação foi concretizada quando, dois meses depois da afirmação da unidade nacional na Constituição da República Portuguesa, Gilberto Freyre inicia uma visita por terras lusitanas, a convite de Sarmento Rodrigues. O objectivo da viagem é dar a conhecer ao sociólogo brasileiro o ultramar português, para que ele o percorra “com olhos de homem de estudo” e, depois, produza um trabalho de reflexão sobre as realidades observadas. Será durante esta viagem, como já citado anteriormente, que o sociólogo brasileiro usará pela primeira vez a expressão luso-tropical para caracterizar o modo de adaptação do português aos trópicos.

Em 1951, o Acto Colonial deixou de ser o documento das diretivas das colónias ultramarinas que passam a ser designadas de províncias ultramarinas. Na nova formulação, Portugal aparece como uma “nação pluricontinental”, composta por províncias europeias e ultramarinas, integradas harmoniosamente no todo nacional uno e indivisível. Escudando-se no facto de nominalmente não possuir “colónias”, o Estado Novo considera que não tem que prestar contas à comunidade internacional do que se passa no interior das suas fronteiras. A tónica da política ultramarina seria, daí em diante, a “assimilação”. Junto com a reforma constitucional que transformou retoricamente o estatuto administrativo das colónias do ultramar, o governo de Salazar mobilizou gigantesco esforço de propaganda para justificar internacionalmente um país, uma nação de extensos territórios, extensas províncias que do Minho ao Timor faziam de Portugal um só território. É neste momento crucial que a obra e o pensamento de Gilberto Freyre tornaram-se instrumentos da máquina de propaganda salazarista. E isso não aconteceria à revelia de Freyre, pelo contrário, acabou por aceitar de bom grado o papel de ideólogo salazarista e em alguns momentos foi percebido como um dos mais eficientes cães de guarda do ditador.

Na conjuntura internacional, Portugal buscava junto à ONU transmitir a ideia de um estado não-colonialista, procurando na história uma justificativa para sua tradição conquistadora ao mesmo tempo que tentava convencer os próprios portugueses de que as colónias eram tão importantes como qualquer quinhão da Beira Alta, tendo a divulgação desta ideia consequências práticas no deslocamento de considerável número de portugueses – de Portugal – para Angola e Moçambique.

No decurso de várias entrevistas, Salazar afirma que “diferimos fundamentalmente dos restantes, porque procurámos sempre unir-nos aos povos com quem entrámos em contacto não apenas por laços políticos e económicos mas essencialmente por um intercâmbio cultural e humano no qual lhes demos um pouco da nossa alma e deles absorvemos o que podiam nos dar”. Não sendo um apologista da miscigenação, salienta agora que da fusão do português com os “povos descobertos” resultaram as sociedades multirraciais brasileira, goesa e cabo-verdiana e são esses exemplos de capacidade criadora portuguesa que estão prestes a repetir-se em Angola e Moçambique.

A produção de informação passa a ser manipulada e difundida de acordo com este novo caráter onde Portugal deveria figurar como uno entre seus territórios, sem qualquer tipo de distinção entre raças ou religião. O que torna curioso observar a tolerância que se havia no além-fronteiras para manutenção dos territórios ditos portugueses e a intolerância política dentro da metrópole. Assim, com o objetivo de doutrinar os portugueses, a Emissora Nacional encarregava-se de elaborar e, difundir por todo o Império, comentários diários que versavam sobre o terrorismo em Angola, o anticolonialismo da ONU, a ameaça comunista, apresentando Portugal como nação étnica e culturalmente heterogénea dispersa por vários continentes. Na lógica da Guerra Fria, Salazar defendia a manutenção do Império como fronteira civilizacional contrária às ameaças expansionistas da URSS. Sugere-se com tal assertiva que Portugal na sua consciência política nacional, estaria novamente numa luta cristã contra os bárbaros.

A herança salazarista que sobreviveu ao 25 de Abril

Gilberto Freyre é muitas vezes evocado nesses comentários:

“O que define, efectivamente, Portugal, o que nos individualiza entre as demais Nações, é aquilo que se tem chamado espírito de missão, quer dizer; afã de levar mais além no espaço o conceito de vida de que se é portador; não o desejo de um Império económico ou terreno, nem sequer de domínio político – mas a vocação irresistível de transmitir a outros a Verdade de que se está possuído. […]

[…] Portugal só é inteiro quando é mundial – então, verdadeiramente começa a sua vida física; Portugal só atingirá a sua autêntica projecção no Mundo quando ultrapassar o plano nacional – o seu apogeu chegará com a plenitude da Comunidade Luso-Brasileira, com a maturidade do complexo luso-tropical. É para isso que hoje caminhamos, é para isso que havemos de trabalhar.”

A difusão do português como um otimista antropológico produz seus efeitos e em 1955, Adriano Moreira introduz o estudo do luso-tropicalismo no programa da sua cadeira de Política Ultramarina no CEPS. A continuação dos trabalhos sobre este tema farão com que o Centro passe a ter como finalidades “coordenar, estimular e promover  o estudo dos fenómenos políticos e sociais verificados em comunidades formadas em territórios ultramarinos ou relacionados com estas, observando e expondo especialmente os fundamentos, características e resultados da acção desenvolvida pelos portugueses no Ultramar”. Adriano Moreira esteve ainda à frente da Sociedade de Geografia de Lisboa com a realização de dois congressos das Comunidades Portuguesas no Mundo (1964 e 1967) e a criação da Academia Internacional da Cultura Portuguesa (1964).

Portanto, no espaço interno português, o discurso de Salazar valia-se da elegia passadista e reafirmação do passado de glórias camonianas, apresentando Portugal como uma alternativa à bipolaridade, procurando definir como espaço económico português, um espaço fechado e protegido, um mercado capitalista de uso quase que exclusivo, onde Portugal pudesse renascer como nação e reencontrar as grandezas do seu passado.

No plano internacional, notadamente na ONU, os trabalhos diplomático portugueses ficaram entregues ao ministro Franco Nogueira, que afirmava que “a Nação portuguesa é como é há 500 anos”, afirmando um presente como passado e um destino sem futuro, evocando a autoridade intelectual de um Gilberto Freyre internacionalizado como termo justificatório dos procedimentos colonialistas do Estado português.

Ora se África representava o presente, Portugal consumava o tempo passado na lógica do tempo presente africano. Entretanto, o Brasil, já tendo sido colónia e feito parte do tempo presente português naquela altura, nas décadas de 50-60, apresentava-se como nação independente no tempo futuro. Assim, o Brasil seria o tempo futuro da nova civilização.

Deste modo, acredita-se que a aproximação de Freyre com o Portugal de  Salazar, não acontecia para afirmar a liderança de Portugal dentro do mundo luso-tropical, mas para afirmar a liderança do Brasil. Portugal seria para Freyre, o tempo passado já afirmado, só podendo se realizar no presente através de uma África ainda em formação; já o Brasil, tendo suplantado aquele passado e presente seria então, nesta lógica, a afirmação já naquele momento, do tempo futuro dos trópicos. Sob esta óptica, Gilberto Freyre é apresentado como um intelectual que dentro de um determinado campo ideológico – o fascismo salazarista, lutava para fazer do luso-tropicalismo (que poderia ser definido como um sub-campo ideológico no espectro salazarista) uma afirmação teórico-científica hegemónica nas ciências sociais contemporâneas.

Numa conferência intitulada “Uma política transnacional de cultura para o Brasil de hoje”, realizada em 1958 na FDUMG, Gilberto Freyre apresenta o Brasil como potência média, com autonomia no concerto diplomático de hostilidades da bipolaridade geopolítica, e mais, o Brasil como potência líder de uma região demarcando assim alternativa civilizacional frente àquelas do capitalismo norte-americano e do comunismo soviético. Esses eram os reais propósitos que o luso-tropicalismo visava enquanto modelo teórico e marco ideológico-doutrinal.

Para Freyre, impunha-se ao Brasil, a missão histórica de liderar a civilização luso-tropical, propondo para tal, um Brasil comandando uma “federação de países de língua portuguesa”. Em suma, ainda que não seja explícito na questão, naquela data, Gilberto Freyre com suas assertivas culturalistas, punha-se já a serviço da ideia de realização do espaço económico português, que os gestores lusitanos só viriam a propor, a partir de 1961 como possibilidade operacional concreta, sendo este na verdade, um projeto já idealizado desde o início da década de 1950, principalmente por causa da pressão revolucionária de grupos africanos autonomistas e anticolonialistas (em janeiro de 1961 acontecem em Angola os primeiros atos “terroristas” ao regime colonialista por grupos políticos que viriam anos depois a constituir o Movimento Popular para a Libertação de Angola – MPLA).

Gilberto Freyre precisou de Portugal, no contexto histórico vivido pelo país, assim como Portugal precisou de Freyre, pois sua teoria favorecia aquele que foi o maior pretexto para a manutenção do Império português e que estava patente na sua teoria do luso-tropicalismo. Ainda que seu propósito político fosse diferente do salazarista, é inegável que deixou-se instrumentalizar pela ideologia do português e retirado contributos pessoais nas suas incursões feitas pelo Império.

Assim como, permanecerá um enigma como o Império português, dentro dos moldes expostos em referência aos tempos presente e passado, manteve-se praticamente intacto até 1975, é notável também que o luso-tropicalismo deu sentido histórico-estrutural à sua manutenção ideológica. Paralelamente, é de se referir que no pós-25 de Abril de 1974, o general Spínola e Sarmento Rodrigues, mantiveram troca de correspondência com Gilberto Freyre, pelo que se depreende que sua importância continuou a constar na configuração dos destinos políticos que seriam traçados a partir da Revolução dos Cravos.



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